quinta-feira, 30 de abril de 2020

Lulu Nua e Crua (Lulu Femme Nue, 2015)


Varilux - É impossível negar que Lulu Nua e Crua seja um filme francês. O roteiro da também diretora Sólveig Anspach, ao lado de Jean-Luc Gaget, adaptado da HQ homônima de Étienne Davodeau, traz um romance digno do cinema francês e, ainda assim, consegue desprender-se de qualquer clichê do gênero. 

Lucie (Karin Viard) começa fazendo uma entrevista para trabalhar como secretária. Esse novo trabalho a levaria para um cidade próxima a Angers, fazendo com que ficasse longe do marido e dos filhos. Sendo rejeitada pela empresa, perto o trem que a levaria para casa, então decidi ficar fora por uns dias. O motivo desse distanciamento não fica exatamente claro, mas percebemos o cansaço da rotina que a aflige e a felicidade que encontra com pessoas que vivem alheias a tanta responsabilidade.

A história pode parecer clichê. A fuga da mulher entendia com a mesmice da vida em uma pequena cidade francesa. A Anspach traz uma montagem que a livra desses estereótipos e conta uma história formidável. Muito disso fica por conta de Karin Viard, que atua de forma brilhante. A atriz dá um ar singular a seu persona, com uma personalidade tão forte (mesmo quando parece frágil) e decidida que a difere de qualquer outra personagem de histórias similares. 

Durante seu auto-exílio na cidade vizinha, ela encontra um ex-detento por quem se apaixona e vive alguns dias felizes, esquecendo de qualquer responsabilidade. Em seguida, conhece uma senhora solitária, com quem cria um laço afetuoso, como mãe e filha. Isso lhe dá a experiência da qual foi privada até o momento e ao voltar para casa, promete que nada será como antes.

O ponto principal do filme é a atuação de Karin Viard, que segura do início ao fim. Mas Sólveig Anspach acerta em cheio na adaptação, fazendo de Lulu Nua e Crua um filme leve e cheio de reflexões, atingindo o objetivo ao mostrar esse feminismo sutil, porém forte, decidido e necessário.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Fendas (2019)


BIFF - Fendas é um filme curioso e criativo. O filme dirigido por Carlos Segundo explora uma novidade da física para mergulhar em questões existencialista, levando a protagonista a um novo lugar e novas idéias. Seguindo uma narrativa literária, andamos por ruas e galerias, viajando através de luzes e sons.

Catarina é uma pesquisadora que chega a Natal (RN) para onde atua como professora. Seu trabalho ajuda em sua pesquisa que consiste na descoberta que, aparentemente, ela mesma fez. Extrair e interpretar o som produzido pela luz. Isso a leva em um diálogo com indivíduos de lugares e tempos diferentes, a partir de tudo aquilo que ela pode ver. Sua pesquisa também a leva por questionamentos intimistas, iniciando uma reflexão sobre ela mesma e a situação do país, interessante quando uma amiga expõe um grande problema para o Brasil: "homem, branco, conservador", é perigoso e hoje vemos o resultado dessa junção.

Fendas traz uma boa ideia. Uma nova forma de comunicação e reflexões interessantes. Mas se segue com uma sonoridade proeminente, falha no imagético. As cenas se prolongam demais, quase sempre em uma fotografia admirável, mas que vai se gastando com o tempo. Falta algum close ou movimento que potencialize os sentimentos, não imagens estáticas que deixem a sequência cansativa e sem sal. As melhores cenas são as mais curtas e não devido ao tempo, mas com méritos em sua beleza, como a escada em espiral, no farol. Mas as demais deixam a aflição por falta de movimento.

O trabalho de Carlos Segundo é mediano. São boas ideias que poderia ser melhor exploradas. Porém, só posso imaginar o quanto seria difícil exprimir essas idéias em imagens. A história é bem contada, corre bem, o que falta é essa coisa na imagem, que, confesso, não saber bem o que é.

O Tesouro Esquecido (2019)


BIFF - Sempre que vejo alguma coisa sobre pintura, lembro de A Coleção Invisível, de Bernard Attal. Qual a importância da arte para uma pessoa. Existem aquele que compram arte por status e vivem expondo valores ao invés de sentimentos. E existem aqueles como o brasileiro Chagas Freitas, que comprou e manteve muitas obras fora do eixo realismo socialista em plena RDA, e que agora mostra sua paixão no documentário O Tesouro Esquecido, dirigido por Tom Ehrhardt.

Chagas Freitas foi um representante cultural do Brasil na Alemanha Oriental. Em cerca de sete anos adquiriu uma grande coleção de desenhos e pinturas de artistas que iam além do realismo socialista proposto pelo governo da época. Com isso, também vieram a amizade desses artista que em seu interesse, acharam motivos de persistirem em seus trabalhos. No momento em que o documentário estava sendo gravado, ele procurava um forma de dar visibilidade a sua coleção e também uma maneira de preservá-la. Viajando novamente a Alemanha, encontra seus amigos e o jeito de expor todas as sua obras.

Ver essas obras é também viajar pela história da Alemanha Oriental. Os depoimentos e fotografias nos mostram como eram as coisas na época em que o artista era incentivado e, ao mesmo tempo, reprimido. O caso é que o governo fornecia meios para que cada uma estudasse e trabalhasse com isso, mas deveria ser feito o que era proposto e o que fugisse disso, seria colocado na obscuridade e esquecido. Tendo a acreditar que muitas dessas obras teriam sido perdidas se não fosse a caçada de Freitas, que reuniu cerca de dois trabalho de mais de cem artistas.

O documentário gira em torno da importância que essas obras têm em preservar a história da RDA. Em tudo o que os artistas viveram, os momentos bons e ruins, a inovação e sagacidade que precisaram para continuar suas carreiras. E também a necessidade de mostrar isso a outras pessoas, para que a arte e a história de um momento que o governo tenta esconder não sejam esquecidos.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Cano Serrado (2019)


BIFF - É difícil produzir um filme de ação no Brasil. Embora o país conte com bons filmes que seguem esse ritmo (veja Bacurau como exemplo), não é algo atrelado ao cinema nacional. Mas Erik de Castro (mesmo diretor de Federal) arrisca e traz Cano Serrado, um policial que se encaixa no western brasileiro e desperta uma discussão sobre justiça em um lugar onde todos são vilões. Onde a verdadeira busca pelos culpados fica além do que é visto na tela e nos faz pensar, mesmo que pouco, sobre os caminhos que seguimos.

Luca (Jonathan Haagensen) é um policial da capital, ele e um amigo seguem em viagem ao interior escutando e com o intuito de participar de um grupo de orações. As coisas começam a acontecer quando param para jantar, onde logo depois são atacados pela guarda militar da região. O amigo de Luca morre no ataque, ele é levado como suspeito e deve confessar sua participação em um assalto no qual o caminhoneiro foi morto, caminhoneiro esse que é irmão do Sargento Sebastião (Rubens Caribé), da Guarda Militar.

O filme desperta algumas ideias. Como as injustiças que acontecem e o que as motivam. A atuação de policiais em cidades interioranas, como diz Sebastião "na nossa cidade quem manda é nóis". Mas o problema é que a história, também de Erik de Castro, não se aprofunda verdadeiramente em nenhum dos casos. O diretor aposta mais na ação, que existe e até nos deixa apreensivo, mas em diálogos soltos e forçados, faz faltar aquela sensação de imersão.

Cano Serrado possui seus méritos, Castro consegue esconder muita coisa para o momento adequado, que pode até surpreender. O que atrapalha são os diálogos forçados que deixam a sensação de ausência. Como se os personagens não estivessem realmente presentes na cena, quando o filme é montado com seus flashbacks conseguimos entender melhor a história, mas mesmo quando chega ao fim, ainda falta algumas coisas para que ela esteja realmente completa.

Blue Girl (2020)


BIFF - O futebol é uma paixão. Em época de Copa do Mundo muitas pessoas se reúnem em frente a TV, seja em casa, na casa de amigos ou em uma mesa de bar. E é isso que o diretor Keivan Majidi vem nos mostrar em Blue Girl, onde em uma vila montanhosa no Curdistão, as pessoas são apaixonadas por futebol, tendo como plano de fundo a Copa do Mundo da Rússia, em 2018. A produção é de uma sensibilidade irretocável, acompanhando um grupo de crianças que lutam pelo sonho de ter um campo de futebol.

O documentário acompanha um grupo de crianças, entre meninos e meninas, que são apaixonados por futebol. Mas vivendo em uma região montanhosa, não encontram nenhum lugar plano onde possam jogar. O jogo acontece nas ladeiras estreitas da vila, tirando o sossego e quebrando utensílios dos mais velhos. Nesse clima de tensão, o jeito é achar um lugar para jogar, junto a um adulto que se diverte com a criançada eles começam seu trabalho no topo da montanha, no que será o primeiro campo de futebol da região.

Blue Girl é uma obra-prima. Com uma fotografia estonteante e trilha sonora primorosa, o trabalho de Majidi recebe atenção em cada detalhe. A presença de Ruud Gullit, o adulto que está sempre com as crianças, mostra o quanto é necessário persistir em um sonho e a menção de nomes famosos do futebol mundial reflete a importância desses jogadores para o imaginário das crianças. 

Existe também uma crítica em relação a proibição de mulheres nos estádios iranianos. Essa crítica fica clara tendo como narradora uma das garotas que ajudam na criação do campo. E se mostra ainda mais quando Gullit convida os aldeões para a primeira partida, deixando claro que não existem diferenças entre homens e mulheres. E é daí que surge o nome Blue Girl, esse era o apelido de uma mulher de 30 anos, chamada Sahar Khodayari, apaixonada pelo Esteghlal Football Club e que foi presa ao se vestir de homem e tentar entrar em um estádio. Ao saber que pegaria entre seis meses e dois anos de prisão, ateou fogo no próprio corpo.

Blue Girl só falha ao não se aprofundar mais nessa questão das mulheres, poderia ter aproveitado o espaço para discutir com maior exatidão o assunto. Fora isso, o filme mergulha de cabeça na missão das crianças em construírem seu próprio estádio e seguirem o sonho de jogar futebol nas maiores seleções do mundo. As crianças trabalham de uma forma tão afetuosa que mal acreditamos se tratar de um documentário, mas ao ver aquela energia que não poderia ser fingida, vemos a importância de algo que deveria se comum em todas as regiões.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Pérolas no Mar (Hou lai de wo men, 2018)


Entrei em uma jornada pelo "cinema" oriental, e coloco aspas porque todos sabem que os cinemas estão fechados e o que nos resta, e agradeço por essa opção, é o famigerado streaming. O fato é que eu não poderia ter começado de melhor maneira. O que a diretora taiwanesa Rene Liu nos traz é de uma delicadeza desconcertante, aquela que quando o filme acaba nos encontramos sem chão, enquanto ao mesmo tempo estamos prontos para o que der e vier.

Pérolas no Mar começa nos apresentando para seu personagem central, Jian-qing (Boran Jing), o homem que aparentar ter tido sucesso na vida. Mas voltamos no tempo para ver a luta que foi chegar até lá, e a importância de um amor que começa de forma inesperada, com a típica personagem maluca e desastrada, aqui chamada de Xiao-Xiao (Dongyu Zhou). O encontro dos dois, agora adultos, os leva a uma viagem por memórias que marcaram a vida de ambos. 

As lembranças sempre retornam ao dia antes do ano novo chinês. Os primeiro encontro dos personagens acontece em um trem lotado, saindo de Pequim rumo a cidades interioranas. Jian ajuda Xiao com seu bilhete perdido e no fim, depois do trem parado devido a problemas na via, os dois acabam indo a pé para mesma cidade. A partir desse momento, se descobre muito sobre os dois. Jian quer desenvolver um jogo que o deixará rico e famoso, Xiao procura um marido mais velho e rico que possa lhe dar uma casa e livrá-la de preocupações. 

Nenhum dos dois conseguem atingir esse objetivo e por isso acabam juntos, sempre voltando a cidade natal para o ano novo chinês. Sendo esse o ponto central da trama, vemos a importância do pai de Jian-qing. Um senhor modesto e que possui um restaurante tão humilde quanto ele na cidade, onde é servida a refeição da virada de ano entre os amigos. A forma como os dois tratam o senhor é como vemos o desenvolvimento dos personagens em relação ao tempo e as escolhas que fazem durante ele. O roteiro de Rene Liu, Yu Pan e Yuan Yuan traz muitos clichês, mas é a sutileza que o diferencia e, claro, a estonteante fotografia de Ping Bin Lee.

A história nos dá um pontapé atrás do outro. Uma hora ele é quente e ficamos felizes com o andamento da história, mas de repente sentimos a frieza embalada por cenários escuros e gélido. Pérolas no Mar é um filme que merece mais atenção, não foi fácil chegar até ele. Talvez porque não seja assim tão novo e enfrenta a batalha constante de lançamentos da Netflix. Mas são quase duas horas de um excelente cinema e aqueles que decidirem se aventurar nessa narrativa, deve fazê-lo até o último segundo.