terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A Liberdade é Azul (Trois Couleurs: Bleu, 1993)


Julie Vignon (Juliette Binoche) perde seu marido e filha em um acidente de carro. Depois de alguns dias no hospital, onde viu o enterro dos dois através de uma TV portátil, volta para casa com um único desejo, fugir de tudo aquilo. Porém, seu marido, músico famoso, seria o responsável por um concerto de grande importância para a Europa, muitos querem que ela dê continuidade ao trabalho, então Julie foge para onde não a conheçam. Esse é o primeiro ato da história de A Liberdade é Azul, primeiro filme da trilogia das cores do renomado diretor polonês Krzysztof Kieslowski, que consegue segurar o espectador do início ao fim.

Desde esse primeiro filme, Kieslowski já tinha em sua mente a criação da trilogia. As cores remetem a bandeira francesa: azul (A Liberdade é Azul), branco (A Igualdade é Branca, 1994) e vermelho (A Fraternidade é Vermelha, 1994). E toda essa primeira produção gira em torno da liberdade que a protagonista procura ao se afastar dos conhecidos. Como em uma cena onde conversa com sua mãe: amigos, família, amores são apenas armadilhas para a vida. Por isso segue livre de qualquer laço. Mas ao mesmo tempo vemos que esse laços são necessários para que nossas vidas sigam em frente. Ela precisa que um vizinho lhe empreste o gato para pegar os ratos que estão em sua casa, logo depois uma outra vizinha a ajuda limpando a sujeira deixada pelo gato. É mesmo uma jornada em busca de liberdade, mas em um momento e outro a leva a redenção.

E é a essa redenção mascarada de desapego que vemos Julie chegar. Através de cenários que sempre trazem tons melancólicos de azul, vemos essa jornada solitária onde ela e nós, espectadores, muito aprendermos. É como um ensaio sobre a realidade das coisas, embora os demais personagens não sejam trabalhados a fundo, vemos neles personalidades que os trazem ao comum, como pessoas que poderíamos encontrar em qualquer esquina na cidade. 

A Liberdade é Azul foi uma das poucas produções francesas de Krzysztof Kieslowsk, cinema que ele tanto admirava. Mas deixou clara sua personalidade e toda a poesia imagética que ele queria transpassar através de seus filmes. Com uma Juliette Binoche brilhando em sua atuação, Bleu arrecadou o Leão de Ouro (1993) e Goya (1994), além dos prêmios Copa Volpi (1993) e César (1994) dados a Binoche. Com isso percebemos que Kieslowski não se apressou, trabalhou no seu ritmo, com empenho e delicadeza. Certamente essa é uma das grandes obras do cinema francês e isso não é algo fácil de se alcançar.

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Fernando (2017)


Fernando Bohrer é ator e professor de teatro no Rio de Janeiro. Aos 74 anos de idade, é provocado pelo trio de diretores Igor Angelkorte, Julia Ariani e Paula Vilela a interpretar sua própria existência, depois de tantos anos sendo outros personagens. Através de um retrato íntimo do ator, com algumas pitadas de ficção, vemos um documentário que revela toda a sensibilidade de Fernando, seus relacionamento com o marido César e seu trabalho, que busca transpassar a mesma essência a futuro atores. Isso faz com que Fernando seja um produção que nos convida a viagem de uma pessoa tão extraordinária, que nos chama atenção a cada diálogo. 

Se por um lado temos um ator que devido a sua profissão atua a todo momento, por outro temos seu íntimo que nos faz pensar não só sobre o ofício, mas sobre uma pessoa que ali é tratada com merecido respeito. Acompanhar o cotidiano do personagem é algo maravilhoso. Somos presenteados com diversas reflexões, que permeiam entre o estado de espírito e físico de Fernando. Um dos primeiros momentos mais bonitos do filme é quando Fernando está com César na cama, apreensivo ao diagnóstico da médica mais cedo. César procura ouvir o descompasso de seu coração, mas o tranquiliza dizendo que não há nada de errado. Uma cena longa, simples, em um quarto apertado. Mas tão bonita que quando Fernando pega a coberta para enrolar o companheiro, emociona quando vemos a força desse amor. A produção segue por essa forte simplicidade.

Além das aulas, Fernando ainda atua. O trio de diretores pegam a essência desse trabalho de atuação. Ensaiando para um nova peça, pegamos Fernando refletindo sobre seu trabalho e sobre a vida. Um outro grande momento é quando discute com sua companheira de cena sobre a velhice, mais uma vez em cena extensa, um ótimo trabalho dos diretores. 

Fernando é um filme atípico, pois apesar de ter como foco o cotidiano de Fernando Bohrer, ele traz discussões sobre a vida de uma pessoa, a importância da arte para o seu desenvolvimento e a dificuldade que muitas vezes encontramos para disseminá-la. Mas encontramos os meios para isso através de Fernando, o ator personagem, um ser excepcional, que talvez devido aos seus anos de trabalho nunca deixou de atuar, mas se transformou nessa pessoa singular e sensível aos detalhes. Excêntrico, extraordinário.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Um Dia de Chuva em Nova York ( A Rainy Day in New York, 2019)


"Não estar em Nova York é a mesma coisa que não estar em lugar nenhum", é com esse pensamento que Gatsby anseia voltar para a cidade de onde veio. Estudante de uma faculdade mais adequada, como diria sua mãe, e sem saber qual rumo tomar, o jovem viaja com sua namorada, Ashleigh, a Manhattan, onde a garota tem uma entrevista com o diretor Roland Pollard, para o jornal da mesma faculdade. 

Essa é a premissa de Um Dia de Chuva em Nova York, o mais novo trabalho do renegado diretor Woody Allen. Aqueles que acompanham o trabalho do diretor percebem de cara que se trata de um filme de Allen, é só ouvir a trilha sonora que dá início ao filme. A narrativa em terceira pessoa do protagonista com músicas clássicas ao fundo é uma das características do cineasta. Gatsby, interpretado por Timothée Chalamet, pode não ter os trejeitos que vimos em Alvy Singer (em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, 1977), mas o discurso é o mesmo. As discussões existencialistas, a procura de um objetivo para a vida e a indignação da "arte obrigatória" são frequentes em filmes do diretor.

Um dos pontos fortes de Allen, que também se mostra em Um Dia de Chuva, é a construção de personagens. Lembro que quando assisti Blue Jasmine (2013), fiquei marcado pela personagem interpretado por Cate Blanchett, tanto por gostar da atriz, quanto pela excentricidade da personagem. Agora temos um elenco forte, onde atores experientes contracenam com os mais novos. Além de Chalamet, temos Elle Fanning (Ashleigh), Liev Schreiber (Roland), Selena Gomez (Chan) e Jude Law (Ted Davidoff). Allen brinca com o seu meio através de Roland e Ted, um diretor e um roteirista que vivem entre festas, autodepreciação e novos "amores". Há também as personagens femininas, Ashleigh é aquilo que o protagonista mais deseja, enquanto Chan é aquilo que precisa, o que lembra um pouco de Meia Noite em Paris

O mais incrível de toda a obra de Woody Allen é como ele consegue reciclar a identidade de seus personagens, dar uma temperada para trazê-los aos dias atuais e ainda assim executar um trabalho tão singular. Para mim, Woody Allen é como um diretor europeu se divertindo em uma Nova York nublada, trazendo mais uma vez Manhattan como protagonista, ele faz a cidade brilhar mesmo debaixo de chuva. Ainda tenho Meia Noite em Paris como uma das melhores obras do diretor nos últimos anos, mas confesso que por alguns dias minhas emoções serão todas de Um Dia de Chuva em Nova York.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Kings: Los Angeles em Chamas (Kings, 2017)


O ano de 1991 foi turbulento no EUA. Após ser acusado de dirigir em alta velocidade, Rodney King é espancado por policiais. Durante toda a investigação, negros viam uma injustiça sendo orquestrada e mesmo com gravações que provem o abuso policial, os envolvidos são declarados inocentes. O EUA entra em chamas. É a partir desse acontecimento real que a diretora turca Deniz Gamze Ergüven estreia no cinema norte americano com Kings: Los Angeles em Chamas, transformando aquele ano em um drama cinematográfico, que por vezes se perde entre seus personagens, mas nos entrega um bom ensaio sobre os princípios do Homem.

Ergüven traz personagens interessantes. Millie (Halle Berry) é uma mulher que leva crianças negras de seu bairro para sua casa, quando elas não têm onde ficar. Jesse (Lamar Johnson) é um desses garotos, o que mais ajuda Millie a cuidar das crianças e vive permeando entre o certo e o errado, em uma constante briga com sua consciência. Com a chegada de William (Kaalan Walker), um garoto mais velho já acostumado com a vida nas ruas, e com o caso de King ganhando repercussão pelo país, as coisas prometem mudar. Millie se desdobra para cuidar das crianças, William decide se virar com elas, enquanto Jesse segue no embalo. Nesse meio tempo ainda surgem a garota encrenqueira Nicole (Rachel Hilson) e o excêntrico vizinho Obie (Daniel Craig), que dão mais personalidade a produção.

Porém, tantas personalidades deixam Kings com uma história um pouco bagunçada. A falta de profundidade boa personagens faz com que tudo aconteça rápido demais e isso atrapalha na imersão do espectador. Alguns personagens, como no caso de Daniel Craig, são colocados na narrativa com a intenção de dar uma dramaticidade mais pessoal. Mas no fim faz com que a produção de Ergüven perca seu aspecto crítico e fique perdido entre uma cena e outra.

Kings: Los Angeles em Chamas traz uma história de grande potencial, mas que não foi bem aproveitada pela diretora. A produção poderia facilmente ser dividida em duas histórias, a de Rodney King e o que seu espancamento acarretou na Los Angeles de 1991, e a história de Millie, mostrando a situação de crianças negras que viviam (e ainda vivem) pelas ruas em um país que se denomina o mais desenvolvido. Seriam dois ótimos filmes onde Ergüven poderia explorar mais seus personagens sem perder a essência de sua história.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

O Paraíso Deve Ser Aqui (It Must Be Heaven, 2019)


43° Mostra SP - Homenageado pela Mostra, Elia Suleiman é um diretor singular. Diretor e ator palestino, Suleiman sempre traz discussões interessantes em seus filmes. Assim foi em Intervenção Divina (2002) e O que Resta do Tempo (2009), e assim é em O Paraíso Deve Ser Aqui, onde ele faz uma mistura de humor e política para discutir problemas atuais, através de uma beleza imagética que é de encher os olhos. 

No filme, Elia Suleiman faz o papel de um cineasta palestino que viaja a alguns países em busca de financiamento para sua nova produção. De acorda com um produtor francês, "o filme não é suficientemente palestino", mas então o que seria um filme palestino senão um filme feito por um palestino que fala sobre a Palestina? Suleiman é a própria Palestina. Em um mundo onde a Palestina não é reconhecida pela Academia do Oscar como um país, o diretor rompe essa barreira e representa a Palestina  a disputa pela estátua de Filme Estrangeiro. Aqui já vemos o tamanho da preciosidade que estamos falando.

O diálogo é pouco, Suleiman prefere o uso da imagem, e devo dizer que de belíssimas imagens, para transpor os absurdos do mundo. Em meio a cidades vazias, o personagem registra paramédicos que entregam marmitas para moradores de rua, policiais que conferem espaços de calçadas, uma fugitiva que desaparece em meia a perseguição e outros acontecimentos que não parecem fazer parte da realidade.  Mas o que é capturado pela câmera são imagens estonteantes e, sim, é preciso dizer isso mais de uma vez porque é a maior qualidade do filme. Não que o restante seja ruim, é tudo muito bom, de sair do cinema maravilhado. Mas quando a câmera está estática só observando o que acontece ao redor de Suleiman, dá aquela vontade de entrar na tela só para ver mais de perto. 

O Paraíso Deve Ser Aqui é um filme que mostra lugares. Lugares e pessoas em constante movimento. Mas Suleiman está sempre parada, alheio ao movimento do que acontece ao redor. O diretor mostra que a Palestina que procura mostrar em seu filme não é tão diferente assim dos absurdos do mundo, mas tão comum quanto. Talvez Suleiman seja a própria Palestina e seu filme venha só para corroborar esse fato. Em meio a diversas manifestações, O Paraíso Deve Ser Aqui nós leva a uma viagem imagética, cheia de beleza e intenções.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

La Vida en Común (2019)


43° Mostra SP - descendentes de uma tribo indígena expulsa de seu território na década de 1980 são convidados pelo governo argentino a reocuparem suas terras. A história se desenvolve através dos olhos dos mais jovens, que são intermediários da cultura indígena arcaica e das novas tecnologias, que caminham juntas durante toda a produção. Existe também a presença de um puma, que embora raramente visto por alguém, tanto espectador quando personagem, está sem presente no dia a dia dos jovens. La Vida en Común é um documentário escrito e dirigido por Ezequiel Yanco, com uma excelente fotografia a cargo de Joaquin Neira.

Falar sobre a produção, é falar sobre a história de tribos ancestrais da Argentina. Já em 2015, Yanco partiu atrás dessa história, em um lugar onde os destroços causados pela invasão dos militares ainda podiam ser vistos. O extermínio dos indígenas na década de 1970 teve como desculpa o progresso do país, e fora ainda mais incentivado após o assassinato de colonos que buscavam ocupar as terras. Hoje eles vivem no que parecem casas futuristas desenhadas para que a nova cidade possa acompanhar o desenvolvimento urbano. Mas o puma, como um ancestral que sempre lembra da cultura e tradições ancestrais, está sempre presente, como caça, ou como caçador.

Mas depois da vida em centros urbanos, retornam às origens com a tecnologia que se tornou indispensável. Um smartphone que usam para ouvir música, ou reproduzir cantos de pássaros, atraindo outro e facilitando a caça. Daí vem a importância da visão juvenil sobre a situação daquele povoado. O novo e o velho encontram-se a partir deles com suas tecnologias herdadas de suas vidas na cidade e a recuperação da cultura indígena, que é feita por meio dos dialetos, danças e costumes aprendidos na escola da região.

É preciso atenção para captar a ideia que Yanco procura transmitir com La Vida en Común. Porém, o que mais agrada e se torna fácil de enxergar, é a fotografia de Joaquin Neira. O planos abertos que exploram cada relevo daquele deserto são belos, do anoitecer ao nascer do sol, existe sempre uma estética que surpreende. Como na cena em que um dos garotos dançam no entardecer, começando com o sol ofuscando os olhos de quem vê, para num segundo momento o garoto tomar o foco, como se através da dança estivesse renascendo, sendo quem ele realmente gostaria de ser.

La Vida en Común pode ser um documentário um pouco lento, cansativo, mas vale a experiência para aprender um pouco mais sobre as origens indígenas argentinas, que pouco chega ao cinema, e também receber uma excelente fotografia, que é de encher os olhos. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Labirinto (Labirent, 2019)


43° MOSTRA SP - Ele corre e grita por seu filho. Em desespero, decide chamar a polícia e iniciar uma busca, é preciso uma fotografia do garoto. Amirali (shahab Hosseini) parece um tanto displicente em ajudar, algo está errado. O desaparecimento revela uma série de fatos ocultos em torno da família. Traições, mortes e desprezo vêm à tona em Labirinto, filme escrito por Tala Motazedi e dirigido por Amir Hossein Torabi.

Desde A Palestina Brasileira tenho me interessado pelo cinema do oriente médio. Em sua maioria, são documentários que tratam da situação política, social e cultural dos países, talvez por isso Labirinto me surpreendeu tanto. Uma obra de ficção com um roteiro muito bem amarrado, atores incríveis e uma história nada intuitiva. Fica claro que Amirali está escondendo algo em torno do desaparecimento de seu filho (que na verdade não é seu filho), e durante todo o tempo as cartas são postas à mesa, dando sugestões do que poderia ter causado o incidente. Mas é sempre um jogo falso, um beco sem saída. Amirali enfrenta seu esposa, Nadir (Sareh Bayat), e sua família, sem saber ao certo o que fazer.

Uma amiga da família está sempre por perto, ajudando, dando suporte para aqueles mais exaltados. Seu papel é importante na trama, mas não como um pilar, é mais profundo que isso. Pois ela é amante de Amirali, e já perto do fim descobrimos que ele estava com ela na hora do desaparecimento, e não em um supermercado como foi dito. Mas ainda a muita coisa para desvendar nessa história, surpreende como acontece tantas coisas em pouco mais de uma hora, e nenhuma delas está largada em algum canto, tudo faz sentido e surpreende.

Dificilmente se vê uma produção tão curta com tudo o que Labirinto apresenta. O drama familiar que não ocorre por acaso, tudo é explicado. Muitas vezes nos fazem questionar os motivos, nos dão sugestões, mas no fim é sempre um equívoco. Gostei do trabalho de Amir Hossein Torabi, além da história bem aproveitada, a fotografia é excelente, sempre focando na expressão dos atores, que atuam muito bem. Labirinto é um ótimo filme de ficção, que abre um leque ainda maior do cinema iraniano, mostrando que além de chamar a atenção para a situação do país através de documentários, também pode entreter. 

sábado, 19 de outubro de 2019

Viajante da Meia-Noite (Midnight Traveler, 2019)


43° MOSTRA SP - Resistência. Esse é o motivo que leva os cineastas Hassan Fazili e Fatima Hossaini, e suas duas filhas, a fugirem do Afeganistão. Fazili gravou um documentário com um dos cabeças do Talibã, o resultado foi o assassinato do general e ameaças de morte a família de Hassan. Diante da ameaça, a família foge em busca de asilo, sem saber o que aguardar. A jornada é longa e muitas vezes tortuosa, com duas crianças as coisas ficam ainda mais difíceis. Munido apenas de celulares, Hassan Fazili nos entrega Viajante da Meia-Noite, um documentário diferenciado devido a aproximação do diretor com a situação, onde as filmagens e os bastidores são unidos com a crua realidade dessa guerra ideológica.

No início das filmagens até parece se tratar de uma viagem de férias. A esperança do casal de que dê tudo certo e a alegria das crianças na expectativa de partir em uma aventura. Todo esse cenário dá ao documentário um ar alegre, diferente do que vem na sequência. A cada país, um novo pedido de asilo negado. Com travessias ilegais, a família é ameaçada por traficantes e logo abandonada. As coisas se tornam ainda mais difíceis quando estão alojados em um “campo” na Bulgária. Lá a vida parece boa, finalmente possuem uma casa, depois de dias dormindo no relento, as coisas parecem que finalmente estão melhorando, até que gangues de búlgaros começam a atacar os refugiados. Sentindo a insegurança do lugar, a jornada é retomada, dessa vez com o frio da neve que vai caindo.

As duas filhas do casal de cineasta, se não me engano com 4 e 6 anos, são sensacionais, protagonizando muitos momentos do documentário. É interessante ver como as duas são inteligentes e altruístas, sempre incentivadas pelos pais. Visto que nasceram e cresceram no Afeganistão, um país extremamente conservador, as atitudes das duas meninas é formidável, como um ato de resistência àquilo que não concordam. Mas ao mesmo tempo é triste ver pessoas são pequenas sujeitas a situações em que se encontram. Em dado momento a filha mais velha diz que seus pés estão congelando, eles dormem no meio da floresta em cima da neve, e tudo que Fazili pode fazer é cobrir seus pés com o cobertor.

Vez ou outra Fazili aproveita a beleza dos lugares por onde passa. Como uma brincadeira, mostrando toda a parte turística em uma situação tão adversa. Viajante da Meia-Noite é mais urgente que um simples registro para a posterioridade. Hassan Fazili e Fatima Hossaini trabalham a todo momento ideias e ideais que os levaram até aquele ponto, prometendo mudanças para o futuro. No fim eles conseguem o almejado asilo, mas a melhor recompensa para quem passa por uma trilha tão dolorosa, seria o direito de viver em paz no próprio país.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Oleg (Oļegs, 2019)


43° MOSTRA SP - Natural da Letônia, Oleg (Valentin Novopolskij) tenta ganhar a vida trabalhando como açougueiro em Bruxelas. Mas um acidente de trabalho, onde ele é acusado injustamente, faz com que perca o emprego. Sem trabalho e precisando de dinheiro para ajudar sua avó e pagar dívidas na Letônia, Oleg acaba caindo no golpe de Andrzej (Dawid Ogrodnik), um criminoso polonês que já vem sendo investigado pela polícia. Tudo começa como uma amizade, mas com o tempo, Oleg vai notando que Andrzej não fará nada do que prometera e voltar atrás será um tarefa difícil.

Oleg, dirigido por Juris Kursietis, é um filme bem singular. Filmes como esse (podemos colocar Carfanaum, Aika e Enclave nessa lista) trazem suas peculiaridades. A jornada humana cada vez mais presente nos nossos dias. O imigrante, ilegal ou não, que busca oportunidade em países desconhecidos, onde ficam a mercê de qualquer injustiça, pelo simples fato de não ser originário daquele local. É algo a se explorar, Kursietis faz isso mostrando alguns dias da vida de Oleg, que procura apenas uma forma honesta de ganhar seu dinheiro.

Outro ponto explorado pelo diretor é a fé do protagonista. Sempre fiel aos seus princípios, divergindo apenas quando não vê outra saída. Mas em momentos em que poderia se aproveitar de certas situações, age de acordo com o que julga correto. Como quando entra de penetra em uma festa, é confundido como ator e acaba a noite na casa de uma "intelectual", que assim que descobre quem ele realmente é, o manda embora.

Juris Kursietis monta uma ótima trama para contar essa história de Oleg, mas existe ali um problema. Da metade para frente o filme se arrasta demais. Algumas cenas poderiam durar menos, ou até serem excluídas. Embora façam sentido, não são exatamente necessárias. Ainda assim é uma ótima experiência do cinema letão. A fotografia sufocante em momentos de tensão e linda em planos abertos, dá a Oleg uma estética intimista, levando o espectador a um cenário injusto, mas mostra que também é possível resolver esse e qualquer outro problema. Podemos dizer que a produção de Kursietis é um filme que gira em torno da injustiça e preconceito, mas também tem muita fé e superação.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Morto Não Fala (2018)


Lembro de quando assisti A Mata Negra, do Aragão, no Festival de Vitória, em 2018. Gostei muito do que vi, o cinema de terror brasileiro em um rumo inimaginável. Depois vieram O Animal Cordial (de Gabriela Amaral Almeida), As Boas Maneiras (de Juliana Rojas e Marco Dutra), o recente O Clube dos Canibais (de Guto Parente) e alguns outros. Todos com suas particularidades, mas excelentes produções. Chegou a vez de Dennison Ramalho, que em Morto Não Fala, monta um thriller tenso e assustador.

Estênio (Daniel de Oliveira) trabalha no IML, uma atividade que muitos já acham assustadora. Seu trabalho consiste em auxiliar e garantir a limpeza dos corpos que chegam a sua sala. Pode ser que falar com os mortos seja algo comum no ramo, mas o filme foge da estatísticas reais quando o falecido responde. Embora pareça loucura, Estênio leva tudo na maior tranquilidade, como se fosse normal. Em casa é que acontece o pesadelo. Seus filhos em fase de pré adolescência dão trabalho para a esposa, Odete (Fabiula Nascimento), que por sua vez, repudia o marido.

É nesse cenário que Estênio se encontra quando um dos mortos revela que sua mulher o está traindo. Mas "palavra de morto é palavra de morte", quando Estênio toma uma atitude levando em consideração tudo o que os mortos já lhe disseram, ativa uma maldição irreversível. A partir desse momento o mundo do protagonista vira de ponta cabeça e o público recebe altas doses de tensão.

O que mais me motivou a ir ao cinema assistir Morto Não Fala foi a participação de Daniel de Oliveira. Gosto muito desse ator, acredito que seja um dos atores brasileiros mais completos. Também gosto muito de Fabiula Nascimento, não acreditei em como ela me fez odiar seu personagem nesse filme. Bianca Comparato possui uma atuação singela, aparece pouco, mas cumpre seu papel e dá muita ligação para a história. Mas quem mais me surpreendeu foi Dennison Ramalho. Conseguiu, em um gênero ainda tão pouco evoluído no país, uma bela produção, que filme lindo. 

Tudo ali conspira contra o espectador. O cenário, a câmera, o desenrolar da história. Embora alguns acontecimentos sejam bem sugestivos, Ramalho ainda consegue surpreender. Você sabe que as coisas vão acontecer, mas a forma como elas acontecem é que nos pega desprevenidos, tomando aqueles sustos inesperados. 

Sai do cinema ainda tenso, mas feliz por ver um filme de terror brasileiro com tamanha qualidade. Esse é um gênero que não costumo assistir, mas acredito que Morto Não Fala disputaria em pé de igualdade com qualquer filme internacional. Gostaria que ficasse um bom tempo em exibição, pois um filme de terror é sempre melhor visto no cinema e já estou incentivando muitos amigos a irem se assustar, assim como eu fiz.

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Meu Nome é Daniel (2018)


Normalmente um documentário parte em busca de algo. Procuramos uma identidade ou alguém que perdemos contato. Procuramos inspirações ou uma forma de expor um mundo desconhecido. Mas em Meu Nome é Daniel, um autorretrato do diretor Daniel Gonçalves, buscamos descobrir o motivo de sua "paralisia cerebral" (coloco isso em aspas, porque mesmo quando o filme chega ao fim, depois de alguns exames, a verdade ainda permanece oculta). Mas não se engane pensando que será uma jornada tortuosa, de salas fechadas com pessoas de jaleco branco. Daniel usa filmagens feitas por seu pai quando ele ainda era pequeno e faz um colagem que mostra todo o seu desenvolvimento, mostrando sua perseverança e atitude.

Embora a ideia de partir em busca dessa descoberta dê início ao filme, ela é tratada em poucos momentos. Na maior parte do tempo temos essa colagem, que mostra como Daniel e sua família conviveu com sua deficiência durante os anos. Toda sua vida é mais que superação, é perseverança, atitude e coragem. É interessante ver como o próprio Daniel persistia em fazer as coisas sozinho, aprendendo a lidar com sua situação. Por isso hoje ele é o personagem dessa produção, um cineasta, um montanhista e coisas que nem mesmo ele achou que seria.

Daniel leva o espectador para o seu íntimo, como se fosse parte da família. Isso fica claro com os enquadramentos, sempre próximos, como se em sua produção seguisse a estética usada por seu pai anos atrás. Essa proximidade nos faz entender sua luta. Logo o motivo para sua limitação se torna coadjuvante e nos atemos a sua luta. É notável ver o esforço de sua família, e dele próprio, para fazer parte das coisas desde sua infância, menosprezando sua condição e buscando agir como igual diante dos demais.

Meu Nome é Daniel é uma surpresa. O que uma sinopse pudesse apresentar uma história dramática, Daniel apela para o humor, mostrando que sua limitação de movimento não define sua vida. Em alguns momentos, como quando decide dirigir um carro ou fazer omelete, ele usa o bom humor para lidar com situações complicadas. Mas o que mais chama a atenção é a analogia feita para encerrar o documentário. Nascido em família de classe média alta, ele questiona como seria recebida a mesma história contada por uma pessoa em outra situação social. É importante levar isso em consideração, dada a situação atual do país, mas o cinema vem forte nesse quesito e assim como Daniel, vamos superar qualquer adversidade.

domingo, 13 de outubro de 2019

Lembre-se de Mim, Por Favor (Qing Ni Ji Zhu Wo, 2017)



Seguir carreira em cinema não é uma tarefa fácil. Caiyun (Wenjuan Feng) sente isso na pele. Vinda de uma cidade interiorana da China, onde era uma famosa atriz de teatro, ela chega a Xangai em busca de seu sonho: ser uma famosa atriz de cinema. Chegando na cidade grande, vai direto para a casa de Ah Wei (Jia Yiping), um cinegrafista que se contenta com o pouco de cinema que consegue fazer. Os dois procuram reviver a história de amor de Zhao Dan e Huang Zongying, dois personagens importantes na história do cinema e da cultura da China, mas a diferença de objetivos os coloca em conflito.

Lembre-se de Mim, Por Favor, dirigido pela diretora Peng Xiaolian, explora muitos aspectos do cinema, amor e a vida na China. O primeiro deles mostra o papel no cinema de pessoas que buscam o sonho de viver dele.  Temos duas buscas, a de Ah Wei, que trabalha às margens do que é o cinema chinês, mas faz seu trabalho com paixão (trabalhando em um documentário sobre a vida de Zhao Dan). E a jornada de Caiyun, que busca se tornar uma grande estrela do cinema, assim como foi Huang Zongying, mas logo percebe que Xangai não é o lugar certo, as coisas estão acontecendo em Pequim. Mas o amor pelo cinema faz nascer o amor entre os personagens. 

A paixão pela sétima arte aproximou os protagonistas que se conheciam desde pequenos. De início, o convívio parece que vai ser turbulento, que não vai dar certo. Mas com o tempo, e muito esforço de Caiyun, os dois se aproximam mais, tornam-se cúmplices nessa busca por viver de cinema. Mas a reestruturação que Xangai vive, dificulta essa jornada. Logo que os dois se encontram bem um com o outro, surge a oportunidade de Caiyun ir a Pequim filmar, Ah Wei recusa essa nova vida. Sua vida está na nostalgia do cinema chinês, onde as coisas aconteciam, em Xangai. 

Lembre-se de Mim, Por Favor é um ensaio sobre o tradicional filme chinês, que em tempos passados era filmado especialmente em Xangai, usando o cotidiano comum, com clichês certeiros e admiráveis. Além disso, explora a junção de ficção e documentário, embora a relação dos protagonistas possa, facilmente, ser encontrada nas ruas de qualquer cidade, o estudo feito sobre o cinema chinês é algo que precisa ser visto por cinéfilos e amantes de cinema. Desde o início Lembre-se de Mim, Por Favor é uma obra de resistência, as ruínas onde os personagens habitam resiste ao tempo, o amor de Zhao Dan e Huang Zongying resiste ao esquecimento, o cinema feito em Xangai resiste à modernidade, tudo isso com tamanha sensibilidade de Peng Xiaolian.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

O Fim da Viagem, O Começo de Tudo (Tabi no Owari, Sekai no Hajimari, 2018)


Muitas vezes vemos o cinema tratar dele mesmo. É sempre um grande prazer ver os bastidores daquilo que tanto gostamos. Mas foram poucas as ocasiões em que vimos alguma produção sobre a TV, principalmente se excluirmos os filmes de comédia. O longa, do já experiente Kiyoshi Kurosawa, nos traz as aflições da profissão repórter em O Fim da Viagem, O Começo de Tudo. Em um retrato intimista de um apresentadora de um programa japonês sobre viagens, notamos que nem tudo é tão divertidos quanto ela faz parecer e existe, em off, toda uma tensão por estar longe de casa e não ter certeza se é realmente aquilo que gostaria de estar fazendo.

No começo, Yoko (Atsuko Maeda) já sai às pressas, está atrasada para a gravação. Levada, quase contra a sua vontade, de moto por um homem de outra nacionalidade, ela finalmente encontra sua equipe de filmagem. É então que o local onde estão produzindo a matéria nos é apresentado, o Uzbequistão. Estar em um lugar desconhecido, com pessoas que falam outra língua, se torna um verdadeiro problema junto a individualidade de Yoko, que em seus momentos de folga explora a cidade por conta própria. Porém, nada ali parece interessá-la, as paisagens, arquitetura, nada chama sua atenção. Isso acontece com toda a equipe japonesa, que procura mitos e emoções, tratando com descaso a história do lugar. Mesmo quando Temur (Adiz Rajabov), um guia uzbeque, lhes conta uma interessante história, o diretor alega que isso não interessaria o público japonês.

Esse descaso está sempre presente. Ele existe na relação da protagonista com a cidade e cultura local e entre os personagens, que buscam qualquer forma de produzir seu material. Enquanto Yoko corre pela cidade, como se estivesse sendo ameaçada pela diferença dos moradores locais, vemos que a maior ameaça ali são os estrangeiros, que tiram o dia a dia do comum. A equipe japonesa nega a aproximação de outras pessoas, algumas até bem intencionadas, por medo o indiferença. Em um dos casos Yoko está em um ônibus a procura de determinado bazar, o homem ao seu lado parece tentar ajudar indicando em seu guia o melhor caminho, mas ela o rejeita como se suas intenções fossem desonestas.

Enquanto fecha os olhos ao que pode haver de belo no país, Yoko se apega ao celular, pelo qual mantém contato com o namorado. Mesmo quando Temur se esforça para chamar sua atenção para outras coisas, ela se mostra desinteressada, mostrando que está ali pelo trabalho e não fará nada além para viver aquele momento de descoberta. Sentimos a frustração de Temur, compartilhamos com ele o amargo de não poder aproveitar a oportunidade para mostrar tudo o que seu país pode oferecer. Em dado momento, por pura incomunicabilidade, Yoko é detida pela polícia. A conversa com o oficial responsável resume a situação em que a equipe se encontra. Notamos que as coisas seriam bem mais fáceis para a equipe japonesa se os mesmo permitissem que fossem. A partir desse acontecimento vemos Yoko explodir, foi presa, seu trabalho não está indo bem e seu namorado pode estar com problemas no Japão. Um momento de tensão e reflexão, tudo resolvido, agora temos uma repórter aberta para novas possibilidades.

O Fim da Viagem, O Começo de Tudo é um belo retrato da vida contemporânea abordada por Kurosawa. Ele permeia entre alteridade e autoconhecimento. A dificuldade de uma pessoa reclusa, individualista, que contrasta com seu trabalho como comunicadora. Talvez o que há de mais forte na produção é a inserção de uma nova cultura na vida de pessoas que estão alheias ao todo. Durante as duas horas de filme vemos o começo de tudo, seu desenrolar, mas no "final" dessa viagem, sentimos o vazio passado pela vida monótona dos personagens, como teria de ser.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Pássaros de Verão (Pájaros de Verano, 2018)


O trabalho que o diretor colombiano Ciro Guerra vem fazendo merece devida atenção. Depois do excelente 'O Abraço da Serpente', longa com o qual concorreu o Oscar estrangeiro em 2016, ele retorna, dessa vez com a diretora Cristina Gallego ao seu lado, com Pássaros de Verão, que segue a linha da produção anterior, mas dessa vez coloca os povos originários, aqui o Wayùu, com uma relação mais próxima do homem branco, logo no início do tráfico de drogas internacional.

Os Wayùu, originários da Colômbia, são uma tribo tradicional, que até os anos 1960 (época em que a história começa) ainda viviam a partir de seus costumes. Raphayet Abuchaibe (José Acosta) é um homem modesto, mas que já começa a divergir das tradições de seu povo, fazendo negócios com arijuanas (aquele que vem de fora, forasteiro). Seu desejo é casar com a filha da família Pushaina, comandada pela matriarca Úrsula (Carmina Martinez). Porém, a venda de café não será o suficiente para pagar o dote, que consiste em algumas cabras, vacas e colares. Quando surge a oportunidade da venda de maconha, usada como erva medicinal pelos Wayùu, ele se junta ao seu amigo arijuana Moncho (Jhon Narvaez) em busca de 50 quilos da erva, encomendado por americanos que dizem estar levando mensagens de paz a América Latina.

Em 1968 muitos jovens começaram a partir dos EUA rumo a países da América Latina para prestar serviços comunitários, conhecidos como "Corpos da Paz". Alguns desses jovens se tratavam de hippies que buscavam novas experiências, como a maconha e LSD. Chegando a costa caribenha da Colômbia, onde poucos nativos falavam espanhol, ainda usavam o dialeto Wayuunaiki, foram em busca da erva medicinal, encontrando (no filme) o intermédio de Raphayet, que só queria pagar o dote de sua mulher.

Essa mulher é Zaida, interpretada por Natalia Reyes. A atividade que começou como uma forma de ganhar dinheiro rápido para o futuro casamento, parte de 50 quilos de maconha para somas que chegam a 1000 quilos. O que de início era um negócio de Raphayet e Mocho, passa a envolver toda a tribo Wayùu. Nisso vemos como as pessoas, uma hora ou outra, ficam a mercê do sistema. Enquanto os jovens norte americanos distribuem mensagens de "não ao comunismo", vemos como o capitalismo leva as pessoas a fazerem coisas que vão em desencontro com suas crenças e cultura. Nesse meio tempo, Raphayet consegue o dinheiro desejado, muito mais que isso, uma casa inimaginada e poder. Em contra partida, consegue inimigos, um conflito interno na tribo, em momento algum vemos os norte americanos intervirem, como se a vida ou a morte de qualquer um ali não valesse o esforço, desde que o negócio fosse feito.

É interessante como Ciro Guerra e Cristina Gallego consegue retratar a história, que traz, ao menos, um pouco de realidade. Com exceção de Carmina Martinez e Natalia Reyes, os atores são descendentes de tribos originárias, sendo que José Vicente Cortez é um verdadeiro Wayùu e como o personagem Andarilho, compõe papel importante para o desenvolvimento da história. O cenário também ajuda nisso, embora o ambiente seco, em momento algum a chuva é recebida com alegria, normalmente ela chega em horas de melancolia, como se fosse mandada por espíritos com o intuito de limpar o mal que vinha ocorrendo. Outra coisa que gostei bastante foi a trilha sonora, que em determinados momentos me fez lembrar Galuber Rocha, como se Pássaros de Verão fosse uma versão colombiana de Deus e o Diabo na Terra do Sol, não pela história, mas pela intensidade do que é ouvido.

O roteiro é de Maria Camila Arias e Jacques Toulemonde, que em sua história mostram como funciona o Capitalismo em cima de personagens que não fazem ideia do que ele significa, onde um sistema é montado e quem está a baixo dele é deixado de lado assim que a coisa aperta. Estamos em uma época boa para o cinema Latino, Pássaros de Verão é mais uma prova de que podemos montar uma produção forte e significativa, ultrapassando as margens do entretenimento e educando a partir de histórias que ainda não ficaram para trás. O filme é dividido em cinco partes, no caso, cinco cantos. As história é "cantada" por um pastor que parece romper a passagem do tempo para mostrar como o sistema é capaz de destruir toda uma cultura.

sábado, 21 de setembro de 2019

Noite Mágica (Notti Magiche, 2019)


Voltando, assim como comentei em Umberto D, a Itália na época em que ela era responsável por muitos dos filmes de arte que eram consagrados em festivais internacionais. Não que esse seja um filme desse período, mas Noite Mágica, do diretor e roteirista Paolo Virzì, resgata o fim da era mágica, quando a Itália respirava cinema.

Tudo começa com um carro caindo no Tibre, em Roma, bem no meio de uma cobrança de pênaltis entre Itália e Argentina. A Itália perde a disputa, quase ninguém se preocupa com o automóvel que precipitou-se ponte abaixo. Mas a polícia chega, reconhece o cadáver de Leandro Saponardo (Giancarlo Giannini), um produtor de cinema. Uma fotografia encontrada no bolso do falecido mostra ele, sua amante e três aspirantes a roteiristas. A amante, Giusy (Marina Rocco) é a primeira que aparece na delegacia, acusando os três roteiristas. Antonino (Mauro Lamantia), Luciano (Giovanni Toscano) e Eugenia (Irene Vetere) chegam depois, para contar ao chefe de polícia os acontecimentos do último mês. É então que a história escrita por Virzì, ao lado de Francesco Piccolo e Francesca Archibugi, começa a ganhar forma.

Tendo como ponto de partida a morte do produtor, Virzì discorre sobre o período de transição do cinema italiano, quando o neorrealismo chegava ao fim e novos roteiristas surgiam com novas histórias. Vemos que existe um pouco do próprio diretor em cada personagem criado, além de semelhanças de personagens secundários com personalidades reais, afora aqueles que receberam o mesmo nome, como Fellini e Antonioni. Mas o mais interessante é ver como essa mudança ocorre. Não é algo exclusivo do cinema, toda a arte passou por essa transformação com o tempo, muitas vezes com ajuda da tecnologia. O tratamento dado aos velhos e novos cineastas, em suas interações, chama a atenção por chegar tão próximo ao real, mesmo a partir de pura ficção.

Ainda em tempo, a atuações de todos os personagens se faz de maneira excelente. Gostei muito de Giannini, um produtor vaidoso diante de sua carreira, que se apega a qualquer artimanha para não perder sua credibilidade. Já os três roteiristas, Lamantia, Toscano e Vetere, estão em sincronia, gerando cenas que vão da graça à tensão de maneira excelente.

Sou aquele cinéfilo que vez ou outra coloca um filme neorrealista na TV, e sempre está presente quando esses estão sendo exibidos em alguma mostra, e ver Noite Mágica foi como voltar em um tempo que não vivi, mas certamente viveria com esse grande amor pelo cinema. Paolo Virzì é um excelente diretor, da época do velho e do novo, que possui propriedade para falar sobre cinema e faz isso comgrande empenho e paixão em sua nova produção.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Umberto D (1952)


O neorrealismo foi um movimento importante para o cinema. Não só isso, foi uma forma encontrada para mostrar ao mundo a cotidiano de um povo após uma grande guerra. É isso que um do seus grandes mestres faz em Umberto D, filme em que Vittorio de Sica  conta as dificuldades de Umberto Domenico Ferrari, um servidor público aposentado que passa suas dificuldades em uma cidade desolada.

Umberto, aqui interpretado por Carlo Battisti, mora em um quarto de pensão, ao lado de Flik, seu cachorro. Logo no início Umberto se encontra em meio a um protesto onde um boa quantidade de aposentados lutam por reajuste de salário. Eles são dispersados pelas autoridades com o maior descaso, sem uma única tentativa de diálogo, uma visão quase futurista do diretos, que escreve o roteiro ao lado de Cesare Zavattini.

O que Umberto precisa é de dinheiro para pagar os alugueis atrasados. Quando Antônia, dona do estabelecimento, lança o ultimato, ou ele pagar o aluguel, ou será despejado, ele se vê em apuros. Procura ajuda entre os conhecidos, mas todos parecem estar na mesma situação. Maria (Maria-Pia Casilio), faxineira da pensão, é a única com quem ele consegue um pouco de contato. A jovem está grávida, tem medo de perder o emprego, então procura em Umberto conselhos que só uma pessoa já vivida poderia dar. 

Agora o protagonista está com essas duas situações a sua frente. Cogita pedir esmolas, como vê outrem fazer, mas precisa manter sua dignidade, que é uma das poucas coisas que lhe resta. Quem vive em uma cidade grande encontra muitos Umbertos no seu dia a dia, mostrando a atualidade do filme de De Sica. Ver um filme do diretor é entender a necessidade do cinema para a sociedade. Sua forma de filmar, com enquadramentos que aproximam os personagens, criando laços entre aqueles que precisam um do outro, é algo belo, mesmo diante de toda aquela tensão. Antônia, interpretada por Lina Gennari, é a única atriz profissional no filme e se torna odiosa como teria de ser. Já Battisti e Casilio são atores amadores, talvez em seus primeiros filmes, o que ajuda a dar mais realismo ao longa.

O cinema de Vittorio de Sica é essencial para quem gosta de cinema e uma peça importante para quem deseja fazer uma análise mais aprofundada da sociedade italiana pós Segunda Guerra Mundial. Isso ainda me lembra de Ladrões de Bicicleta (1948), outra obra prima do diretor, que talvez apareça por aqui um dia desses.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Divino Amor (2019)


Em 2027 o Brasil é um país onde a religião é o principal sistema político. Joana (Dira Paes) é uma das crentes que, trabalhando no cartório civil, é responsável por atender casais de desejam se divorciar. Seu papel, segundo seu próprio plano espiritual, é tentar recuperar esses casais e manter o valor da crença e da família brasileira. Seu desejo é sincero e para que isso aconteça, Joana encaminha os casais ao Divino Amor, uma espécie de seita religiosa que dá título ao filme. Sua credulidade se manifesta através de sua fé, mas também existe algumas atitudes estranhas imposta por sua religião, juntando isso ao desejo inalcançável de ser mãe, a protagonista embarca em uma jornada de amor e fé.

Olhando para o momento em que nos encontramos, onde temos "o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos", Divino Amor passa de ser uma ideia distópica para se torna um temido futuro. O filme do diretor e roteirista Gabriel Mascaro traz um história interessante, mas executado de uma forma tão sutil que deixa a produção pouco atrativa. Desde o início uma criança que narra e explica alguns momentos em off nos dá um panorama do que o Brasil em 2027. O carnaval foi deixado de lado e substituído por uma balada religiosa. Enquanto orações mais corriqueiras podem ser feitas em um drive thru. Enquanto isso, toda a população vive a espera só retorno do Messias, embora não estejam preparados para isso. O mistério em torno da personagem de Dira Paes está montado, mas peca em alguns momentos.

Quando assisti Boi Neon fiquei surpreso com a qualidade do que foi feito por Mascaro. Mas a cena de sexo entre o Iremar e Geise foi de um certo exagero. Isso se repete de forma mais contundente, quase apelativo, em Divino Amor. Mas vamos ao início. A "igreja" frequentada por Joana e seu marido tem um "ritual" onde dois casais vão a um quarto e participam de uma espécie de swing, não por prazer, mas pelo sentimento de compartilhamento. A ideia é interessante, mostrando até onde vai a fervorosa crença na religião. Porém, a execução é exagerada, exibindo longas cenas que entregam tanto, que pouco deixa para a interpretação do espectador.

Embora Gabriel Mascaro tenha começado a escrever Divino Amor há 4 anos, o filme não poderia ser mais atual e por isso se torna tão importante. Talvez o baixo orçamento o tenha prejudicado um pouco, mas as falhas que apontei são apenas uma questão de percepção, não gostei de algumas coisas, mas isso não tira o mérito da história forte montada pelo diretor, que merece ser vista no cinema.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Dor e Glória (Dolor y Gloria, 2019)


Salvador Mallo (Antonio Banderas) é um cineasta que devido a problemas graves de saúde encerrou suas atividades. Quando a cinemateca de Madri o convida para apresentar a versão restaurada de Sabor, um de seus filmes de maior sucesso, Salvador passa a revisitar alguns momentos da sua vida, questionando algumas de suas decisões e buscando algo que dê sentido ao seu novo estado.

Ainda lembro de quando assisti A Pele Que Habito (2011), o primeiro filme de Pedro Almodóvar que vi no cinema, com devida atenção. Pode-se dizer que Dor e Glória é muito de quem é Almodóvar. Salvador Mallo enfrenta uma crise sobre sua existência no cinema, sua vida como homossexual e a dependência de drogas. Tais fatores trazem uma história intimista, explorada de maneira que só o próprio diretor poderia fazer. Quando falar de si pode ser um problema a ser enfrentado, o cineasta espanhol o faz com formidável beleza.

Porém, em diversas entrevistas Almodóvar afirma não se tratar de um filme autobiográfico. Quer acredite, ou não, não se pode negar as semelhanças entre o personagem interpretado por Banderas e o próprio diretor. Além de toda a trajetória explorada no filme. Claro que alguns acontecimentos são pura ficção, isso é sempre necessário em uma produção cinematográfica, mas qual a distância do real para o inventado? Essa é a questão que deixa Dor e Glória ainda mais atraente.

Gostei de ver Almodóvar dirigindo Antonio Banderas mais uma vez, é uma coisa que funciona muito bem. O trabalho do ator é sempre singular, se encaixando perfeitamente com a genialidade do diretor. Diante de uma fotografia primorosa e uma excelente paleta de cores, se Dor e Glória não é uma autobiografia do diretor, desejamos vigorosamente que o fosse.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Santiago, Itália (2018)


A eleição presidencial chilena em 1970 foi acirrada, mas vencida democraticamente por Salvador Allende. Suas ideias socialistas que visavam ajudar o trabalhador incomodou muita gente dentro e fora do Chile. Então veio o golpe de estado. Golpe dado pelo exército e marinha, com patrocínio do governo dos EUA e organizações terroristas. As perseguições começaram, quem se opunha aos militares era inimigo e compensado com a morte. Sequestros, desaparecimentos e torturas foram  os artifícios  usados pelo governo e a única escapatória para os perseguidos era pular o muro do único lugar onde poderiam conseguir abrigo seguro, a Embaixada Italiana.

Essa história pode ser encontrada em livros de história e muitos sites na internet. Não contente com isso, o diretor e roteirista Nanni Moretti traz depoimentos de quem se  refugiou naquela embaixada e que se não o tivesse feito, não poderiam contar a verdade do que acontecia nas ruas do Chile naquela época. Em Santiago, Itália recebemos essa verdade com precisão. O documentário mostra toda a história, começando na vitória de Allende até o momento em que os perseguidos políticos conseguem deixar o país rumo à Itália.

Alguns dos entrevistados vivem na Itália até hoje e contam como foram bem recebidos no país, conseguindo abrigo e oportunidades de trabalho com facilidade. Em certos momentos a emoção transborda para fora da tela, relembrar algo tão cruciante, que devido a isso é pouco falado no Chile, é muito doloroso, mas preciso. Quando Moretti entrevista os militares, dois deles, parece até que estamos em uma filme de faz de conta, pois é difícil acreditar que alguém possa afirmar que o que foi feito pelos militares tenha sido para o bem do povo. Mas Moretti deixa claro que ele não é imparcial e está fazendo isso para expor os verdadeiros culpados e não nos deixar esquecê-los.

Nanni Moretti faz um grande trabalho em Santiago, Itália. Ganhou, merecidamente, o prêmio de Melhor Documentário no David di Donatello, que é como um Oscar do cinema italiano, e o Nastro D'Argento dado pela crítica. O filme se faz uma produção importante para quem quer deseja entender um pouco mais da situação do Chile na década de 1970 e gostaria de evitar que algo assim aconteça no nosso futuro.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Camocim (2018)


Camocim de São Félix é um pequeno município de Pernambuco. Em época de eleição a cidade se divide em duas para defender seu partido político. Mayara, de 23 anos, é a responsável pela campanha de um dos candidatos a vereador e faz o possível para que ele e suas ideias de mudança vença a oposição. Mas a verdadeira protagonista é a cidade, que vira um campo de batalha político.

O diretor e roteirista Quentin Delaroche já havia produzido um documentário sobre a greve dos caminhoneiros em 2018. Agora em Camocim, volta mais uma vez para um assunto político em busca de mostrar os bastidores do que pode parecer uma guerra civil.  O documentário se torna interessante ao mostrar a atuação de um candidato a vereador, César Lucena, junto as pessoas do município, suas ideias e ideais para um renovação na política local.

Porém, isso o torna um pouco falho, talvez o uso de não atores seja o fator de tamanha timidez do candidato César, só Mayara entra em cena com mais facilidade. Ver sua vontade de mudança e o modo como acredita e luta por seu candidato chega a ser inspirador. Uma das coisas que ela diz mais de uma vez chama a atenção, algo como: "na eleição passada eu votei vermelho porque acreditava no que ele dizia, mas ele se perdeu na ganância e agora eu voto azul. Se amanhã ele errar, eu voto branco, preto, verde, desde que seja de acordo com o que é melhor para a minha cidade", acredito que muitos deveriam ver ao menos essa cena.

Embora não atinja o potencial que poderia, Camocim é um bom filme. Um dos seus problemas é um personagem frio, que não conquista o público, como vereador. Isso poderia ser evitado se o foco maior fosse na situação da cidade durante o período eleitoral e menos nos bastidores do candidato, mas ver o empenho de Mayara na campanha em que acredita faz valer a pena. Delaroche, francês radicado no Brasil, se mostra um diretor com vontade de buscar o inesperado, o conflito sociopolítico, e se continuar com isso e aprender com seus erros, nos dias de hoje, vai ter muito assunto para futuras produções.

A Árvore dos Frutos Selvagens (Ahlat Ağacı, 2019)


Sinan (Doğu Demirkol) é um professor recém formado que está de volta a sua cidade natal. Seu próximo objetivo é se tornar um grande escritor e esse retorno ao vilarejo em que nasceu promete atrapalhar seus planos. Seu pai acumula dividas com apostas em cavalos, diante disso sua família não pode ajudá-lo com a publicação de seu livro. Além disso, precisa, vez ou outra, ajudar no desenvolvimento de uma fazenda sonhada por seu pai. Seu jeito arrogante de idealista recém formado não o ajuda em conseguir patrocínio, mas no fim, ele finalmente atinge seu objetivo, mas o que fará depois?

A Árvore dos Frutos Selvagens desapontou alguns críticos em Cannes. Diz-se que ainda na primeira metade, muitos deles deixaram a sala. Como eu sempre digo, existe um grande problema em um filme muito autoral, ou ele agrada, ou não. Não existe uma área cinza para esse tipo de filme, é preto ou branco. Mas essa é uma característica do diretor e roteirista Nuri Bilge Ceylan. Cenas longas, diálogos bem explicados (longos) e uso extenso da paisagem.

Mas não deixa de ser um problema. O filme conta com mais de 180 minutos, metade deles desnecessários. Algumas vezes é interessante, como na cena em que Sinan discute com outros dois moradores sobre o Alcorão, mas na maior parte do tempo as extensões das cenas se tornam cansativas.

Porém, se esse é o pecado de Ceylan, ele compensa com um enquadramento fundamental para contar sua história. História essa que explora muito bem o desenvolvimento de uma pessoa que nasce e vive em um pequeno vilarejo. Sua jornada de descobrimento que questiona o que ele gostaria e o que precisa fazer e a decisão tomada diante disso. O interessante dessa jornada de Sinan é o modo como ele vai descobrindo o que é e tudo o que o leva a aceitar isso. Sempre com uma fotografia que por vezes se mostra meio desconsertante, mas na maioria do tempo, cirúrgica.

Nuri Bilge Ceylan é rígido como já era de se esperar, mas também dá espaço para o cômico e crítico. Explorando uma história bem autoral, ele parte com uma produção que poderia ser um pouco mais curta, menos cansativa, mas que se o fizesse, perderia sua personalidade. A Árvore dos Frutos Selvagens é um bom filme, claro que é preciso ir disposto a ver um filme longo e arrastado, tendo isso, será uma ótima experiência do cinema turco.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos (2016)


Vitório (Edson Celulari) é cego desde criança. Mas isso não o impediu de ser o pizzaiolo na pizzaria herdada de seu pai. Tão pouco em ter uma mulher, Clarice (Soledad Villamil), e filha, Alicia (Giovana Echeverria). Ele está satisfeito por ter superado todas as adversidades da cegueira, até que o pai de Clarice aparece com o filho de um amigo que pode curar essa falta de visão. Agora Vitório precisa entrar em conflito consigo e tomar uma decisão que pode ser a mais importante da sua vida.

Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos é escrito e dirigido por Paulo Nascimento, de quem eu já havia falado em Valsa Para Bruno Stein. Não lembro onde li, mas em algum livro dizia que um bom filme poderia ser feito em 90 minutos. Teu Mundo... tem esse tempo, mas precisava de muito mais. A apresentação de Vitório é excelente, promete boas emoções no decorrer da história, mas isso não acontece. Os dramas existem, mas são rasos, falta profundidade em todos os personagens. Clarice e Alicia estão deslocadas da vida do personagem de Celulari. E temos também o gaúcho Cleomar (interpretado por Leonardo Machado), que trabalha bem, mas não é ajudado pelo roteiro.

Se houvesse mais tempo para trabalhar cada personagem, teríamos uma história mais completa. Embora Alicia não demonstre nada de muito interessante, Clarice e Cleomar parecem ter um plano de fundo que deixaria a história mais emocionante. Não é que Celulari tenha atuado mal, fazia um bom tempo que não o via na tela e gostei muito do que assisti, mas assim como os outros personagens, faltou tato. Momentos de extrema euforia, com eles no estádio do Corinthians ou quando o time ganha o mundial de clubes, passa como um flerte de alegria, ocasiões pouco aproveitadas.

Sendo justo, Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos e um filme mediano. A produção traz seus momentos de emoção, mesmo que não muito aprofundados, e também suas graças. Mas a mensagem principal é passada, através de closes que aproximam o espectador dos personagens e afirmam a necessidade de se enxergar por dentro. E também o conflito entre deixar de ver, ou até mesmo desver, depois de tanto tempo em um mundo formado de ideias incertas das coisas. Um dos últimos trabalhos de Paulo Nascimento traz novamente ao elenco Giovana Echeverria e Leonardo Machado, dessa vez como protagonistas. A Superfície da Sombra pode explorar mais a qualidade desses atores, vai ser minha aposta para uma sessão futura.

Deslembro (2019)


Filha de pais militantes que lutaram contra a ditadura militar, Joana foi criada na França, país onde sua mãe refugiou-se após seu pai ter desaparecido em poder dos militares. Alguns anos depois, contra sua vontade, volta ao Brasil com sua mãe, dois irmãos e padrasto, que por sua vez lutou contra Pinochet, no Chile. A perspectiva de uma nova vida no Brasil desperta fragmentos de memória de Joana, que em busca de desvendar o desaparecimento de seu pai, embarca em uma jornada de amadurecimento e descobertas.

Delicadeza é o que melhor define Deslembro, filme escrito e dirigido por Flávia Castro. A história se passa em 1978, um período de transição no Brasil, e traz como cenário o Rio de Janeiro. Leva um tempo para que Joana se adapte ao novo país, mas é nisso que vemos um cinema sendo bem feito. Quando chega ao Brasil a garota ainda está atrelada a música internacional, mas com o tempo vai sendo envolvida pelo samba carioca.

A única coisa que desaponta um pouco é a simplicidade, que em Deslembro age de duas maneiras. O desapontamento é devido a falta de emoção em algumas cenas das quais se espera mais. A atuação de Jeanne Boudier (Joana) é excelente, mas em alguns momentos em que contracena com Eliane Giardini (sua mãe, Lúcia) falta um pouco do confronto adolescente. Mas em contraponto, temos a simples e bela fotografia de Heloísa Passos. Embora o Rio seja uma ótima cidade para se filmar, vemos muitos quadros fechados, mas que ainda assim capturam toda a beleza que podem proporcionar.

Se Flávia Castro já havia feito um ótimo trabalho no documentário Diário de Uma Busca (2011), agora ela traz o mesmo tema para a ficção e surpreende. Talvez tenha faltado um pouco de emoção, mas acompanhar Joana em suas descobertas e acabando com um pequeno resquício transgressor nos mostra o que foi aquele período de transição do país, que parece ainda não ter chegado ao seu fim.